AS GRETAS
Tábuas
muito largas, compridas, empretecidas e apodrecidas pelo sol, água, falta
de caiação e de zelo formavam as imensas paredes da velha sede. Sede rodeada
pela curralama de lascas, toscamente colocadas na horizontal; por um mangueirão
de lascas colocadas uma a uma na vertical; e, por um velho e doce pomar. Ao
norte, a "reta", onde passava o ônibus que nos levava ao patrimônio. Ao sul uma
lagoa, formosa, mas com jacarés, e mico, muito pó de mico, onde éramos
proibidos de entrar. Ao leste, a
fazenda da viúva Julieta no final de um abandonado campo de aviação; a oeste, a
reserva do coronel Arlindo.
O ar
sombrio, encardido e melancólico daquelas imensas tábuas respingava em cada um
de nós, acastanhando nosso corpo e alma. Num ou noutro vão das tábuas, uma ripa
que aparava as gretas. Mal pregadas, com o tempo, algumas se despregavam, e a
gente acabava de arrancar. As gretas, da grossura de um dedo, era um canal por
onde me chegavam coisas do aquém e do além mundo. Um caibro arrodeava as paredes
internas, à altura dos nossos ombros ou um pouco mais, suportando as tábuas e um
horror de bugigangas que eram ali colocadas: anzol, linha de pescar e de
costura, caneca, lamparina, óleo de lamparina e de cozinha, farolete, pilhas Rayovac do rádio de mesa Semp,
chicletes ping-pong que se guardava para o outro dia e toda sorte de qualquer
coisa que era lixo, mas que podia servir para em caso de precisão, dizia minha mãe. A sala da frente tinha o piso de vermelhão
mal-acabado que era um luxo. O resto da casa era de assoalho também de largas
tábuas encardidas com muitas gretas. Gretas... era assim que chamávamos aquelas
fendas papa-trecos: minha fonte de imaginação.
Sim,
as gretas... Eram fantásticas!! Eram elas que me traziam o mundo e ao mundo. Dia
e noite. Aprendi o mundo pelas gretas! E
isso explica muito do que sou. De dia, o
sol me trazia seres que só mais tarde descobri serem da noite. De noite, a
escuridão me trazia sombras que mais tarde descobri serem meus conselheiros. Fantasmas,
bois e vacas bravas, ferrões, peões embriagados e valentes, grileiros, pai
invernado nas invernadas, espingardas, ladrões, bichos-papões, espíritos de
escravos que o coronel mandou surrar até matar. Era o vento gelado que entrava
candente pelas gretas do lado oeste. Da mata fechada. E eu ficava ali vendo
homens, mulheres e principalmente criancinhas, que desobedeceram às ordens
superiores, sendo chicoteados impiedosamente pela alma do Coronel que, montado
num enorme cavalo preto reluzente, tomava forma de verdugo para perpetuar seu
poder. Nossa! Meu quarto ficava repleto de vivas labaredas violentas. A peonada era acionada. Só fogo cruzado
acalmava a voracidade das enormes línguas vermelhas.
As
mesmas gretas me traziam, num cone longo e alegre, um rico e colorido
repertório imagístico do meu ser, tão distante. Eu acompanhava seu trabalho. Aquele
cone se afunilava, afunilava, até se desintegrar, num canto da sala de
vermelhão, com a faceirice de quem cumpriu seu dever. E ali se deixava cair aliviado. Eram dezenas de milhares de fragmentos, tão minúsculos
que até hoje tento juntar. Eu me perdia nesse intento. E minha mente fervia. Um diálogo interior era travado com todos
aqueles fragmentos multifluorescentes que chispavam tomando forma ao meu comando.
Meu comando era frágil, as formas não se
fixavam. Eram velozes como o meu pensamento, escorregadio, volátil. Fugaz,
maldosamente fugaz. Mas eu pensava... desordenamente como as falas internas... num
descompasso sem fim. E nada eu entendia.
Pensava tanto... eram tantas pontas de fios perdidos. Uma e mais uma e mais uma... A trama sempre
por fazer. Um vai e vem de pensamentos para ser num tempo e espaço tão infinitamente superiores a
mim, que me faziam doer o silêncio.
Silêncio que vez ou outra era rompido longe longe pelo motor de um avião
bem pequenininho. O tempo não passava. Deitava-me
de bruços no assoalho da sala do meio. Perscrutava com uma faca de mesa cada
milímetro das fendas que se abriam para mim. Buscava tesouros: alianças de
ouro, anéis de brilhante, moedas de ouro que o coronel ali enterrava. Eu ia
pinçando tantas coisas: palito de fósforo, agulha quebrada de máquina de
costura, fiapos de linha, papel de prata do maço de cigarro Continental do meu
pai. O cone dourado desaparecia. O tempo passava e eu voltava para ele,
entorpecida, esperando entrar pelas mesmas gretas os meus professores da noite.
16 DE JULHO DE 2008/1966
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