Estes e outros textos que serão aqui postados é o resultado da produção dos alunos do segundo ano do Ensino Médio do Centro Integrado de Ensino, na aula de Língua Portuguesa. Meu objetivo era que os alunos se colocassem na posição do outro, responsabilizando-se pela coerencia da narrativa.
Como foi parar ali e o que aconteceu no dia em que acordou e estava sozinho
Aluna: Bruna Maria Batista
Série: 2. ano do Ensino Médio
Apesar de o frio não mais queimar os nervos, ossos e músculos, ainda podia sentir o odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra. Naquela manhã de primavera de 17 de abril de 1945, o soldado Passos Dias Aguiar, da Força Expedicionária Brasileira, FEB, acordou no silêncio de uma cidade devastada e no meio da poeira que restava do caos da Batalha de Montese. Ainda sentindo vertigens, Passos demorou a perceber que estava só e fora esquecido embaixo dos destroços de um Panzer, tanque de guerra alemão temido e famoso entre os soldados aliados. Sua primeira atitude foi se mexer para ver se tinha algum ferimento. Sentiu na panturrilha uma dor que já conhecera na tomada de Monte Castelo: estilhaços de bala da metralhadora nazista MG42, conhecida pelos brasileiros como lurdinha. Fora isso, o restante dos ferimentos era corriqueiro. Cacos de vidro pelo corpo, arranhões e cortes eram comuns e, pelo tempo que já vinha sofrendo com isso, parecia que seus glóbulos brancos haviam criado imunidade contra eles, pois não se curvavam a qualquer tipo de infecção que poderiam causar e até os havia passado da categoria de ferimentos para a de machucados.
Após ver que os estilhaços não lhe prejudicavam a locomoção, tentou achar um lugar para se esconder e verificar se estava realmente sozinho. Viu ruínas de uma casa e percebeu o efeito terrível dos tiros e bombardeios na pequena cidade italiana de Montese. A casa tinha marcas de sangue. Estava toda esburacada, as portas destroçadas, os móveis em desordem. Olhou ao redor da cidade e viu que o único companheiro que poderia ter ali era o inseparável medo. Como procurava sempre o lado positivo dos fatos, o pracinha pensou com as últimas gotas de humor de um soldado na guerra: “Pelo menos não precisa pedir licença para entrar”. Entrou na casa. Instintivamente, procurou o que restava da cozinha para ver se encontrava algum alimento e uma mesa para colocar e ver o que tinha sobrado na mochila de 25 quilos que tinha que levar com todos os equipamentos e mantimentos para a possível sobrevivência naquele ambiente hostil. Passou por aquilo que achava ser uma sala, pois havia um sofá empoeirado, uma lareira, uma mesa de canto com um pé quebrado e um porta-retrato caído sobre ela. Arrumou-o para ver se era a foto da família que ali habitara. Não era. Era a personalidade que representava todas as características de um ditador populista, o poder e o sorriso de Benito Mussolini. Passos ficou admirado por ter encontrado uma foto dele ali. Suas pretensões e as de Hitler é que haviam sido a causa da guerra e eram os culpados por aquela casa estar do jeito que estava. Mas não julgou a família por isso. Naquela guerra, todos eram vítimas da boa oratória e do carisma dos ditadores. Além disso, não podia julgar uma família italiana, pois, no Brasil, muitas famílias também colocavam o retrato de Getúlio Vargas na sala. “Devem estar agora com raiva dele” – pensou. Deixou o porta-retrato do jeito que estava para evitar olhar novamente para aquela imagem.
Ao chegar à cozinha, abriu o armário caído no chão. Não havia nada. Claro que não havia. Nesses tempos, comida valia mais que ouro. Havia pratos e louças quebrados pela cozinha inteira. A mesa, virada para servir de proteção contra tiros, estava perto da janela. Colocou-a no lugar. Não aguentou a poeira que subiu e tossiu. Pôs a mochila sobre a mesa e começou a retirar tudo o que havia nela. Tinha de tudo: uma lanterna, um mapa da região dos Apeninos, dois maços de cigarros, uma baioneta, foto da atriz americana Rita Hayworth – que trocou com um soldado americano por uma nota de cruzeiro – notas de dinheiro alemão, americano e italiano, cartuchos das armas, dois pares de meia que precisavam ser lavados, um prato de metal, uma colher, um garfo, o kit de primeiros socorros com duas penicilinas, uma bússola, tesoura, lâminas de barbear, um espelho, luvas, barra de chocolate americano, uma caixa de fósforos, latas de ração, fotos dos colegas de batalhão, um caderno pequeno, uma caneta, um terço que ganhara da avó, uma Bíblia, cartas que recebera de sua namorada Marieta, uma agulha com um carretel de linha para costurar os furos da farda, uma foto da família, um pedaço de corda, um cobertor que achara uma vez numa casa ao desembarcar em Nápoles e mais um punhado de utensílios que recebera durante as batalhas ou que colecionara durante as passagens por diversas cidades italianas para que pudesse mostrar aos amigos e familiares quando voltasse para casa.
Após colocar os objetos em cima da mesa, pensou que tudo poderia ser útil em tempos de guerra. Os cigarros, as luvas e as meias o aqueciam nos dias frios; a baioneta servia mais para abrir latas do que ferir o adversário; o chocolate dava energia; a Bíblia, o terço e as cartas da namorada eram companhia quando se encontrava sozinho na trincheira e esperava o ataque do inimigo. Além da mochila de 25 quilos, carregava um colete, capacete, cantil com água, uma faca, uma pistola Colt M1911 e uma submetralhadora Thompson M1.
Porém, havia três objetos aos quais dava mais importância. O primeiro eram as seis latas de ração norte-americana, que vinha sendo sua alimentação há muito tempo. Diziam que trazia todos os nutrientes necessários para uma boa alimentação. Poderia até trazer, mas uma coisa era certa: tinha um gosto horrível. Como todo bom mineiro, Passos amava e sentia saudades do pão-de-queijo, de uma boa feijoada e dos doces caseiros de sua casa. O segundo era a penicilina. Apesar de não saber o que era, a sua história e a de Alexander Fleming, sabia que aliviava a dor e que já salvara a vida de muitos de seus companheiros. O terceiro era a foto de sua família. Todos estavam nela: o irmão caçula Pedro, as irmãs Maria e Madalena, o irmão José, o irmão mais velho João, a tia Teresa, a avó Rosa, a mãe Aparecida e o pai Juca. Estavam até os dois cachorrinhos Baleia e Fubá. A foto fora tirada no quintal da sua casa. No fundo, aparecia o pomar. A casa ficava num sítio em São João Del Rei do qual a família tirava todo o sustento. A vida era simples, mas nunca lhe havia faltado alimento. Sentia muitas saudades de nadar na lagoa, de comer da comida de fogão à lenha, de acordar com o som do galo cantando, de tirar leite da vaca Mimosa, de ver o pôr-do-sol e do cheiro de mato. Trabalhava na roça e vendia o que era produzido na feira da cidade. Gostava das festas de São João, de passear com Marieta na quermesse e de ir à Igreja todos os domingos. Passos se sentou na única cadeira que estava inteira e acendeu um cigarro. O ambiente bucólico despertou-lhe no coração um sentimento de dor e saudade que o fez refletir por algum tempo sobre como viera parar ali.
Tudo começou no dia 17 de agosto de 1942, quando o navio cargueiro Itagiba foi atingido em cheio pelo submarino alemão U-507. Para tentar uma vida melhor, seu irmão mais velho João foi embora para o Rio De Janeiro e se alistou na Marinha. Infelizmente estava a bordo do Itagiba e não estava entre os sobreviventes. Passos e sua família somente ficaram sabendo da tragédia um dia depois, numa terça-feira, dia 18. Viram a notícia estampada na capa de um jornal da cidade. A dor foi grande. Passos, a partir dali, passou a alimentar o desejo de se vingar da morte do irmão. Como a revolta e a pressão popular eram imensas, em 22 de agosto de 1942, o governo brasileiro declara guerra contra o Eixo. Não vendo oportunidade melhor para matar nazistas e se vingar, Passos se alista ao Exército, na 2ª Companhia do 1° Batalhão do 11° Regimento de Infantaria, com sede na própria São João Del Rei. Tinha todos os requisitos mínimos para se alistar: mais de 60 quilos, pelo menos 1,60 metro e 26 dentes na boca.
Passos foi treinado de 1942 a 1944. O treinamento era pesado; o sargento, chato; a rotina de exercícios, monótona. Aprender a ler mapas e a mexer em aparelhos com os quais nunca tivera contato: armas, rádios, bússola. Mesmo assim, foi uma fase inesquecível, principalmente por causa dos colegas que viraram grandes amigos. Nas poucas folgas que tinham, jogavam baralho, tomavam cerveja, davam risada, falavam sobre a sessão de cinema e discutiam qual era a mais bela atriz. Ainda lhes sobrava tempo para aprontar com o sargento, é claro, ele não podia podia ficar de fora. Colocavam apelidos uns nos outros e jogavam futebol. Tinha gente ali de todos os cantos do país, com os mais diferentes sotaques.
Como tudo o que é bom dura pouco, no dia 02 de julho de 1944, Passos e seus colegas embarcaram no navio americano General W. A. Mann e cruzaram o Oceano Atlântico em direção à Europa. A viagem inteira foi tomada pelo medo de submarinos alemães atingirem o navio e por enjôos do balanço das águas. O navio era apertado, e tinha que dividir o espaço da cama, que mais parecia uma maca, com o colete salva-vidas, e a mochila de 25 quilos de equipamentos.
Em 16 de julho de 1944, desembarcou na cidade de Nápoles. O objetivo era alcançar a cidade de Bolonha pela estrada conhecida como Rota 64. Para se chegar ao objetivo, os pracinhas, unidos ao 5° Exército Americano, deveriam romper a Linha Gótica, complexo defensivo dos alemães formado por fortificações nos Montes Apeninos. Passos ainda não sabia o frio que iria passar nas batalhas de Monte Castelo e Belvedere. Mas, quando botou os pés em solo italiano, percebeu três fatos que lhe chamaram muito a atenção. Primeiro, o Exército americano era extremamente segregacionista. A 92ª Divisão de Infantaria era formada apenas por negros vindos do sul dos Estados Unidos. Isso era muito estranho para ele, pois na FEB tinha soldados de todas as cores e origens: brancos, negros, mulatos, caboclos, cafuzos e nikeis. Segundo, era que o Exército brasileiro era totalmente obsoleto, tanto em relação aos equipamentos e armas quanto à tática de guerra. Os norte-americanos possuíam armas que nunca tinham visto antes. Tanques mais resistentes, metralhadoras potentes, rádios melhores e táticas eficientes tiveram de ser aprendidos e aderidos pelos brasileiros. Terceiro e último era o relevo. Nunca esperava que iria ser uma região montanhosa, pois não tinha sido treinado para essa situação. Mas o pior estava por vir.
O frio tomou conta nas Batalhas de Monte Castelo e Belvedere. A lama e o chão escorregadio dificultavam a locomoção. Muitos tiveram um dos pés amputado por causa dos pés-de-trincheira. A FEB teve que emprestar casacos dos americanos. Mesmo assim, de forma heróica venceram as batalhas e, já com o clima mais ameno da primavera, prosseguiram para a cidade de Montese. Como em todas as outras batalhas, os tiros de lurdinhas cortaram a comunicação. No dia 14 de abril de 1945, o 11° Regimento de Infantaria passou os morros e chegaram à cidade. A batalha urbana durou até o dia 15. Passos estava na linha de frente quando cruzou a esquina de uma rua e deu de frente com um Panzer. Não adiantava correr, pois havia alemães esperando atrás do tanque. Quando já estava pronto para morrer, escuta um barulho. Nem deu tempo de olhar para trás. Viu uma luz aparecer e jogá-lo contra uma parede. Não viu mais nada. Quando acordou, descobriu que a luz era uma arma do Esquadrão Anti-Tanque e, por isso, estava embaixo dos escombros daquele Panzer. Os companheiros não devem ter lhe achado e deixaram o local. Foi assim que Passos foi parar sentado naquela cadeira. “Parece até que passou muito tempo, por tudo o que aconteceu comigo. Mas não se passaram nem três anos. Tenho que sair daqui agora e encontrar meu batalhão antes que eu vire estatística como os outros mortos”, pensou ele. E foi o que fez. Antes de sair, fez um curativo improvisado na panturrilha para que aguentasse até chegar ao médico do batalhão. Pegou a mochila e foi atravessando a cidade para pegar a estrada. No meio de um canteiro, viu três montes de pedra. Três soldados morreram. Ficou curioso para saber se havia sido considerado morto ou desaparecido na lista de baixas e ficou com medo que algum amigo estivesse entre aqueles montes de pedras ou estivesse machucado. Acelerou o passo.
Quando passou por o que devia ter sido uma padaria, entrou para ver se tinha sobrado algum alimento que pudesse aproveitar. Como na casa em que tinha passado antes, não havia nada. Apenas cacos de vidro e buracos de tiro nos móveis de madeira. Porém, ao abrir a porta de um dos balcões, derrubou um copo de vidro que não esperava que estivesse inteiro e fez um barulho que soou alto naquela solidão. Depois de alguns segundos, escutou um ruído vindo de dentro da cozinha. Passos não acreditou. “Socorro, socorro”. Era isso mesmo o que ouviu. O susto foi tão grande que o sangue lhe subiu à cabeça, e as pernas bambearam. Pegou a arma e preparou-se para o que estava por vir. Apesar de o pedido ser em português, poderia ser uma armadilha de algum nazista. Nessa guerra, deveria estar preparado para tudo. Mas, ao entrar na cozinha, viu que era somente um pracinha que, como ele, fora esquecido ali. O soldado não conseguia falar direito; estava tossindo sangue e na perna estava faltando um pedaço de pele e músculo. Olhou na dog tag, etiqueta de aço usada para a identificação dos soldado. Viu o nome Manoel Silva – 6° Regimento de Infantaria. Tinha que arrumar um jeito de tirá-lo dali. Passos teve de ser rápido. Aplicou a penicilina na perna e enfaixou o mais apertado que podia para estancar o sangramento. Precisava de uma maca. Pegou a porta da cozinha que estava no chão e amarrou nela o pedaço de corda que estava na sua mochila para que pudesse puxá-la. Ergueu o soldado e o colocou em cima da porta. Embrulhou-lhe com o cobertor e, antes de sair, deu-lhe um pouco de água do cantil para ver se acordava. Apesar de beber a água, o soldado não buscava nenhuma reação. Pegou a corda e começou a puxá-lo com todas as forças.
A quase dois quilômetros de distância da cidade, Passos sentiu pingos de chuva caírem em sua nuca. Com as pernas já cansadas e, com toda aquela lama, vencer aquele trajeto não seria nada fácil. Avistou uma fazenda a sua esquerda e, sem hesitar, parou antes que a chuva aumentasse. Apesar de estar com sua estrutura inteira, e os móveis em ordem; não havia ninguém na fazenda. Era de se imaginar. Nem pessoas, nem vaca, nem porco, nem cavalo, nem galinha... mesmo tendo ainda um celeiro, um estábulo e uma casa intactos. Ao entrar na casa, colocou o soldado para descansar na cama que havia em um dos quartos. Passos não queria saber de comer ou beber água, pois o cansaço e a tensão eram maiores do que a fome e a sede. A chuva caía pesada lá fora. Devia ser uma das últimas que sobraram do inverno. Acendeu o lampião para iluminar um pouco o quarto. Sentou na poltrona que tinha em um canto do quarto e começou a pensar que, antes da guerra, aquela fazenda devia ser cheia de vida como o seu sítio em Minas Gerais. Pegou o terço e rezou para que as divindades protegessem a ele e ao soldado. Não queria pensar no que teria que passar no outro dia, já que a ração teria que ser dividida entre os dois e a penicilina estava acabando. Deitou a cabeça e dormiu.