RELATÓRIO REFLEXIVO
Arlete Fonseca de Oliveira
PUTA QUE LA MEEEERRDA!! Essa expressão hiperbólica foi eleita a mais impactante dentre os muitos palavrões que Roberto Carlos e seu amiguinho desfiavam num canto do pátio da Febem. Ali, bem cedo; eles descobriram o mágico poder das palavras. Puuuta que La meeeerrda! Assim bem entonada era o antecipado passaporte para o mundo adulto. Eles estavam crescendo. Precisavam dele. Lembrei que uma vez eu também ensaiei a tonicidade da palavra “Viado” seu viaado! Ô viaaado! E que absorta no prazer da melodia da palavra, não pude me defender do puxão de orelha que me pegou desprevenida. Mas agora eu estava ali, na sala de vídeo da escola onde sou professora. Absorta também, mas tentando captar o mistério da mente infantil do personagem do filme “Contador de Histórias”. Era a aula inaugural do retorno dos professores do CIE ao grupo de estudos.
Como professora de Língua Portuguesa, reconheci que a expressão Puta que La merda –, com a ajuda desse La emprestado do espanhol – tinha um valor semântico muito mais incisivo do que “viado”. Reconheço também que, se não fosse esse La do espanhol, o menino não traduziria nem sua euforia diante do resultado positivo de um sensacional assalto à época negra de sua vida, nem sua euforia diante do público efervescente do Maracanã lotado, à época em que sua vida ia tomando contornos cor-de-rosa.
Sem essa expressão, confesso que também não expressaria o misto de nostalgia, indignação e admiração que tomou conta de mim. Nostalgia porque a história me reportou à infância, sem que a minha fosse exatamente a mesma. Indignação porque vejo ainda hoje crianças, adolescentes e até adultos pobres sendo seduzidos por falsas promessas. Puxa, será que pobreza e ignorância precisam andar sempre grudadas? Admiração porque pude ver a dor e o sofrimento serem vencidos pela força da superação. E pra ser sincera fui também tomada de uma certa dor de cotovelo: com tantos educadores no Brasil, e o olhar amigo tinha de vir de um estrangeiro? Será que são mais perspicazes que nós?
– Tudo bem, pensei, deixa pra lá. Vou me concentrar na história. O som está ruim. Presto atenção na imagem. Se pelo menos eu soubesse inglês para ler a legenda... Mas, pensamento que é pensamento pensa:
“O que há de comum entre a Febem do filme e escola de hoje?”
“Nada!” – foi a resposta imediata para pôr ponto final naquela discussão mental que iniciava sem pedir licença.
“Ora, Febem tem diretor, coordenador, professor; crianças difíceis e não tão difíceis'.
“Escola também tem isso”.
“A Febem tem estatuto, planejamentos e planos de ação, etc.”
“A escola também.”
“A FEBEM é idealizada para oferecer oportunidades de conhecimento a todos que ali entram.”
“A escola também!”
“A Febem promete às crianças acesso ao ensino superior.”
“A escola também!”
“A Febem garante a formação de cidadania.”
“A escola também!”
“A Febem garante capacitação profissional para além dos muros da instituição.”
“A escola também!”
“A mãe do menino do filme o deixou lá por causa dessas promessas.”
“As mães dos meninos da escola também!”
“Na Febem, há professores que acreditam no seu PODER de poder mudar o mundo!”
“Na escola também!”
Mas, na Febem, há os que acham tudo isso “poesia”. Balela. Coisa de burocrata.”
“Na escola...”
_Cheeega!! Me deixa ver o filme? Gritei! Mas, tive de tolerar o complemento da frase interrompida:
“Na escola também! Escuto dizerem: “Olha o que o ensino ciclado fez das escolas! Fácil pra quem não está em sala...”
Com um fio conectado na TV; outro, na discussão que era travada, fiquei lembrando que já vira na internet resultados positivos de algumas Febens.
“Pois, então! Há também muitas escolas de sucesso!”
“Ah!, mas... a Febem é para crianças carentes. A escola não. Na escola, a criança tem pais presentes que dão o afago do olhar carinhoso e compreensivo... estão distantes do mundo do desemprego, do álcool, das drogas, do consumismo, das futilidades, dos desentendimentos, das aparências... Do descaso”.
_ Puxa! – pensei - Acho que parte de mim foi contaminada pelo fantástico mundo de Roberto Carlos. Não do cantor... (Sonhei que entrei no quintal do vizinho/E plantei uma flor/No dia seguinte ele estava sorrindo/Dizendo que a primavera chegou...), mas do Roberto do filme.
Sonhador que era, esse Roberto, ao avistar as grades da Febem, se deliciou com o colorido e a alegria de um circo do lado de dentro.
“E quando a professora de Educação Física frustrou todas as suas expectativas? Ô coitado!!”
- Coitado nada! – Respondi sem titubear – Sua imaginação de menino já àquela época era muito fértil. A figura do hipopótamo foi um jeito bem humorado e criativo de ele se defender de frustrações nocivas à sua saúde emocional.
Uma risadinha de canto de boca se esboçou disfarçada: “ Em que animal você acha que seus alunos pensam quando você está dando aula?”
_ Não respondi. Fujo sempre de insinuações maliciosas.
Mas fiquei pensando... que figura representaria os meus momentos de descaso. De preguiça...”ah! essa é fácil.” De falta de compromisso... de impaciência...
“Ah que bobagem perder tempo com isso. Por que não faz um julgamento dos professores da Febem. É mais interessante!”
- Atendi prontamente – era canja! - Eu acho que aquela professora estava ali só “encostada”. Ou seria por desvio de função? Ou por Apadrinhamento?... Fim de carreira, talvez ... Coisa pública... Dinheiro público, sabe como é.
“Ah! Que que tem? Nada disso tem dono mesmo! Melhor com o povo do que nas mãos de corruptos.”
A razão deu um chega pra lá no devaneio. “Chega!” Pensamentos incompletos é coisa de idiota!”
Voltei à sala onde assistíamos ao filme. Ouvi professores dizendo que ali também havia crianças carentes. Muuito carentes! De concentração. De atenção. De pais. Ah! esses eram o entrave na aprendizagem daquelas crianças! Se não fossem eles...
Acordei de vez:
_ É elementar, cara professora! Não há diferença entre Escola e a tal Febem do filme!”
Dessa constatação, vem outra dúvida que me encafifa: “mas se não é diferente, o que a escola tem feito de diferente?”
“Xii... que medo. Será que as escolas um dia também terão suas portas cerradas por decreto?”
Lembrei das nossas lamúrias. Também, senão as mesmas, são muito parecidas às dos representantes da Febem:
“Esse moleque é um caso perdido, o pai abandonou a mãe que caiu no mundo. “Aquele lá, coitado, já nasceu com pouco tutano”; “aquele outro tem uma preguiça que só vendo”. “Sabia que o fulano está com o pai preso porque matou a mãe? Não? Te contei não???” E numa cara de desesperança não diz, mas, com aquele suspiro, é como se dissesse:
“Esse mundo tá perdido”. Pai que não educa, filho que não aprende... diretor que não determina... E esse governo que não paga bem?... Puuutaquelamerrda, sô!, ainda querem que o professor ensine? Aonde, meu?”
Na sala de vídeo, ouço a voz da Pandora. Era a discussão sobre a história do filme que já terminara. Uma história de resgate. Resgate de um menino que já estava na goela do capeta. O resgate fora obra de uma educadora estrangeira, ES-tran-gei-ra! (...) Ah, tá! Xiii... já tava esquecendo de dizer o que disse a Pandora. Ela disse:
_ A CRIANÇA EDUCADA NA ESCOLA PODE LEVAR O QUE APRENDEU PRA CASA E MUDAR A VIDA DE SUA FAMÍLIA.
- Puta que La merda de novo. Mas, simples assim.
A Pandora voltou!!! E trouxe em sua caixa um montão de histórias fantásticas para aliviar os medos, os anseios e os rancores de nossas crianças. De nossos adultos também. E DE NÓS PROFESSORES TAMBÉM! Gritei. Só em pensamento. Só em pensamento.
Não falei nada pra não puxar assunto. Já havia passado uns quinze minutos do prazo combinado. Muitos dos que ali estavam já tinham cumprido uma jornada de 12 horas/aula. A Tânia encerrou ....PONTO FINAL?
P.S
Falei tanto que não fiz uma sinopse do filme. Aquele do qual gerou esse relatório reflexivo aí em cima. Vai aí um controlC- ControlV dele. Bacana a escolha da nossa professora - a Tânia. É capaz de ela querer me contrariar. Vai querer explicar que ali não é professora, que ela é apenas uma... nem sei como ela vai se denominar. É só esperar, que vamos saber.
Título / Nome Original: O Contador de Histórias
Gênero: Drama
Duração: 100 minutos
Elenco:Maria de Medeiros Daniel Henrique Paulinho Mendes Cleiton Santos Malu Galli Ju Colombo Daniel Henrique da Silva Ricardo Perpétuo Matheus de Freitas
Sinopse:
O Contador de Histórias' gira em torno da trajetória de Roberto Carlos, um menino pobre de Belo Horizonte que, durante a década de 70, cresce em uma entidade assistencial para menores então recém-criada pelo governo. Entre fugas e capturas, ele é considerado irrecuperável por seus educadores. A vida do garoto, porém, muda quando ele conhece a pedagoga francesa Margherit (Maria de Medeiros, de Pulp Fiction), que vem ao Brasil para realizar uma pesquisa. Juntos, aprendem importantes lições um com o outro, que mudarão as vidas de ambos para sempre.
Curiosidades:
» Com direção de Luis Villaça e produção de Denise Fraga e Francisco Ramalho Jr., O Contador de Histórias inspira-se na história real de Roberto Carlos Ramos, ex-menino de rua que se transformou em professor e contador de histórias, ofício no qual é hoje considerado um dos melhores do mundo.
http://www.mauavirtual.com.br/cinema_verfilme.asp?id=681, acesso em 07 de abril de 2010.
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