Elaborei esse memorial para participar do Processo seletivo para Mestrado em Educação - UFMT -Rondonópolis
Memorial
Onde você ainda se
reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Oswaldo Montenegro
Na foto passada ou no espelho de agora?
Oswaldo Montenegro
1965. Casa imensa. Tábuas emparelhadas, por
cujas gretas me chegava o mundo. Sim, no
espelho de agora, vejo cones. Longos e alegres, eles aproveitam as brechas para
me trazer uma rica e colorida multidão de partículas douradas. Aos milhões,
elas se afunilam, afunilam, até se desintegrarem num canto da sala de vermelhão. Eu ali; perdida no tempo... tentava juntá-las e decifrá-las. Neste tempo,
não havia nem passado nem presente; nem futuro. Era só o tempo me dando tempo
para brincar de aprender com aquelas partículas que chispavam velozes e voláteis.
Maldosamente voláteis, não me davam o tempo de juntar as tantas pontas de fios
e fiapos perdidos naquela trama sempre incompleta. Era um trabalho de silêncio
e concentração. Eu pinçava tesouros: alianças e moedas de ouro, anéis de
brilhante, coisas que o Coronel enterrara por ali um dia. Palitos de fósforo,
agulha quebrada de máquina de costura, fiapos de linha, papel de prata do maço
de cigarro Continental. Vacas bravas, ferrões, assombrações, frutas, quintais, sapos,
café com leite no curral; grileiros e lagoa. Entorpecida, nesse êxtase, os dias
longos se tornariam curtos e trariam logo o Natal que traria o “janeiro do ano
que vem”.
Janeiro chegaria. Com ele, o grupo escolar,
cujas escadarias eu subiria com ares de soberba, na certeza de pôr fim à
metidez da minha irmã mais velha que se achava melhor do que eu só porque sabia
ler. Nunca mais ela me inventaria coisas que não estavam escritas no papel só
para me fazer de boba. Sim, chegaria o dia de eu herdar a sua blusa branca, as
suas meias rendadas três quartos e a sua saia azul-marinho de pregas. O melhor
de tudo: herdaria a sua Cartilha com o casalzinho de meninos andando por uma
estrada. A felicidade seria total não fosse o uniforme novo que ela ganharia
numa espécie de prêmio por ter crescido. Fingiria nem me importar. Não lhe daria uma
brecha que fosse para ela pensar-me em desvantagem. Resignada, daria graças a
Deus! Nem todas as crianças da fazenda tinham a mesma sorte. Eu, pelo menos,
desfilaria de uniforme, mesmo que fosse surrado. Em breve eu também o repassaria para minha irmã
mais nova. Ah se repassaria! E por acaso também não a enganaria com leitura de
tapeação? Mas também leria para ela as
mais belas estórias tiradas das figuras da cartilha. Era um direito de quem
podia mais, porque sabia ler e escrever!
Em segredo, e em silêncio, à força da timidez, não
sei por quanto tempo, fui colecionando fios soltos e juntando ponta com ponta,
entrelaçando os que eu dava conta ou enovelando outros que mais tarde
revelariam as pontas. Fios de dor, medo e carências financeiras. Fios de carinho,
afeto e franqueza. O ponto de equilíbrio veio de lambujem.
1966. 1º ano do grupo escolar. Sala cheia.
Muitos meninos e meninas desconhecidas. Esquisitos, para falar a verdade! Coisa
que digo hoje, mas não naquela época. Choravam. Tinham a mão dura. Não
conseguiam seguir a linha, a empunhar o lápis e a manter caderno em posição
correta. Nada de começar a cartilha. Observava, sem deixar transparecer minha
ansiedade e decepção. Tinha pena daquele braço jovem, de lindos pelos negros
bem tratados com uma pulseira, grossa, de ouro, em cuja chapinha se lia
“Shirley”. Com olhos de professora, Dona
Shirley vistoriava cada detalhe que pudesse interferir na aquisição do beabá. Eu
esperava. Continuava meu namoro antigo com a cartilha... na sala de aula ou
deitada num galho de uma mangueira do quintal da fazenda. Ah... isso não tinha
preço. Saboreava com a alma cada figura, cada letra, cada história que, mais
tarde, pesarosa, vi serem criticadas. Como amava a lição do “x”: “Eu sou a
letra x./ Sou uma letra muito interessante/ Sabem por quê?/ Porque tenho cinco
valores”. Lia essa lição até de ponta
cabeça. Mesmo antes da barriga do cachorro do dado da faca. Por causa daqueles
alunos lentos-lentos, a lição do “X” nunca chegou.
Num pulo, veio a dona Eulália e a dona Cristina
e já eu estava no quarto ano com a Dona Nair. Era humanamente severa. Aprendi a
diferença de postura e compostura; ostentação e humildade, e o sentido de profissionalismo
acima de tudo. Era o ano de fazer o exame de admissão. Dar-se por satisfeito
com o diploma primário era cultura da época, sobretudo para a classe baixa. Coisa
que a dona Nair não admitia, de jeito nenhum! O curso Ginasial era importante. Nem
todos entenderam seu recado. Muitos ficaram de arribada.
1970. Primeira série ginasial. Um monte de
disciplinas, várias professoras; só um professor homem, senhor Mauro, o
professor sem orelha. Logo no primeiro dia, ele desfez nossas fantasias e nos explicou
cientificamente a função das orelhas no corpo humano. A partir dali, treinei
para enxergar somente a essência das pessoas. Aprendi a ver o senhor Mauro, o professor
de Ciências. As professoras jovens e bonitas, recém-formadas, traziam letras de
música com as quais aprendi a polissemia das palavras, a olhar “a rosa da
janela” e ter um “sonho pequenino...” e a conhecer o mar e sua extensão sem
nunca tê-lo visto, compreendendo, pela letra de João Nogueira, as disputas que
se travava por territórios e até por águas do mar. Aprendi a importância de se
valorizar o que é nosso. Um pouco depois dessa época, também me dediquei,
desastradamente, à tarefa de aprender a “copiar”. “Copiar” para mim era aventura
que exigia coragem e expertise. Desejava ser os que eram, geralmente, a atração
da sala. A dona Conceição, uma professorinha de vinte e poucos anos, me chamou
em particular... estava decepcionada! De mim ela não esperava. Bastou. Aprendi
a fazer escolhas. Fui me fazendo. Aprendendo menos do que devia; mais do que eu
necessitava.
Um amigo do meu pai, certa vez, chegou à
fazenda com um fusca amarelo carregado de livros. Sei que suas filhas gostam de
estudar... eu o ouvi dizer. Engraçado... nem gostamos tanto... deve ser porque
os outros gostam menos. Mesmo assim, gostei do que ouvira. Mais por vaidade do
que por merecimento.
Mas me lembro bem... não foi por falta de excelentes
professores. Falavam até da doce Dulcineia de Dom Quixote que, bem mais tarde, fui
atraída a lê-lo. É um pecado, mas a professora nunca soube que o li por causa
daquele “doce Dulcineia” pronunciado tão enfaticamente há alguns anos. Se não
era excelente aluna, também não era a pior. Aprendi a ver, a ouvir e a sentir. Aprendi
capturar sentimentos pelas palavras.
1973. 13/14
anos. 8ª série. Fase negra da minha vida escolar. Poesias e letras de canções
apaixonadas ocupavam os espaços dos livros e da mente. Pensava no menino que
estaria me esperando no final da aula e que eu, mentirosamente, esnobava. As
aulas eram tomadas pela presença dele. Os professores não tardaram a perceber
minha desatenção. Em vão, alguns tentaram reverter a situação. Naquele ano, eu
estava entre os fortes candidatos à reprovação. Uma vergonha. Minha irmã mais
velha, dois anos à minha frente, vibraria com o fracasso. Mudança. De São Paulo para Mato Grosso. Salva pelo gongo! Não dei o gosto nem o desgosto
para ninguém.
1974. Fazenda no pantanal. Dois anos fora da escola.
No ermo, entre cerrados, onças e sucuris, as ondas do rádio me traziam o mundo.
De banalidades à Voz do Brasil; de horóscopo e programas religiosos às aulas do
Mobral. Dois anos tão necessariamente
perdidos. Fazia o papel de guarda-livros da fazenda. Os acontecimentos do dia, os
afazeres dos peões, as entradas e as saídas, as perdas e os nascimentos de gado
eram meticulosamente descritos num livro específico para isso. Tudo era resumido
numa folha de papel almaço e enviado para o dono da fazenda em São Paulo no
final de cada mês. O pagamento do pessoal chegava via correio. Os recibos eram
preenchidos e assinados. A maioria deles com o polegar. Compreendi em que se sustentava
a condição de explorado e explorador, antes, muito antes, de conhecer Karl
Marx, Paulo Freire ou Leonardo Boff.
Lia e
relia Hamlet, Maomé, O exorcista, Quo
vadis? revista Cruzeiro e Amiga, Lao
Tsé, Dom Casmurro, várias vezes. A maioria dos livros fazia parte do acervo
que, há alguns anos, chegaram pelo fusca amarelo. Minha mãe não se conformava e
não se conformava. Só uma das filhas estudando? É que a mensalidade do
internato era cara... as condições financeiras não permitiam pagar um
colégio interno para os três filhos. Tem que dar um jeito. Onde já se viu crescer
como eles cresceram! Sem instrução? Tanto falou que meu pai, a duras penas,
alugou uma casa em Rondonópolis. Fazenda só final de semana. Muita despesa e
desgaste físico. Nova fase.
1976. 8ª série. Colégio Estadual “Sagrado
Coração de Jesus”. Curso noturno. Mais madura, mais centrada. Professores
maravilhosos e dedicados. Criativos. Embora fosse comum ouvir que o estudo de São
Paulo era melhor que o de Mato Grosso, não era verdade. Os alunos eram ativos,
participativos. A maioria estudava à noite e trabalhava durante o dia. Sem
demora eu também já estava empregada. Tínhamos metas e fazíamos planos. Carência financeira também ensina. Irmã Cirani,
professora apaixonante deixou a turma, foi para Campo Grande. A Professora
Deusa, recém-chegada da capital de São Paulo a substituiu. Encantada com sua
maneira de portar e se comportar, como pessoa e profissional, perguntei em que
era formada. E ela, em tom, voz e pronúncia muito bem articulados: Letras e Línguas.
Ouvi sem mais palavras. Nem sabia direito o que era aquilo, mas a referência
era boa. Guardei aquilo comigo. Fim do curso ginasial, finalmente! Mesmo tendo
como referência uma professora, não ia de jeito nenhum fazer o curso normal. Mudaria
de escola. Fui fazer o 2º grau, Técnico em Contabilidade por influência da
minha “experiência” como guarda-livros.
1977. Curso Técnico em Contabilidade. Decepção.
Corpo docente, com exceção de uns três professores, não ligava a mínima para o
ensino. Na falta de opção, se instalaram como professores. Nem formados eram.
Mas, o que me incomodava não era a falta de formação; era a falta de
compromisso. Faltavam professores, e professores faltavam. Era uma
desconsideração sem tamanho. Não era preciso estudar muito para tirar boas
notas. Nesta época, aprendi abominar a falta de compromisso. Os três que se
salvavam garantiram minha permanência na escola. Eram profissionais brilhantes:
o professor de História e Educação Moral e Cívica, o de Matemática e a
professora de Português. Posso estar cometendo injustiça, mas quando penso no
2º grau, minha referência de bom professor são apenas esses três. Terminei o
terceiro ano, sabendo pouco. Mesmo assim, passei no primeiro vestibular para
Letras em Rondonópolis. Fiz o primeiro semestre. Casei-me, tive filhos. Optei
por cuidar deles.
Em 1988 fiz outro vestibular para Letras. Não
para ser professora, mas porque tinha como referência professores que me
marcaram como pessoas e profissionais, que eram formados em Letras. Na
graduação, tive excelentes professores; o estilo de alguns poucos, porém, me
reportava à época do 2º Grau. Aprendi que as singularidades deviam ser
respeitadas e que podia aprender muito com elas. Nesse ano, depois de tanto
tempo acreditando que sabia escrever, descobri que não sabia. Uma professora,
que não era de Português, diante do grande número de alunos com o mesmo
problema, parou sua aula e, em dois tempos, mostrou concretamente nossas
falhas. Refizemos o texto que ela devolvera, estrategicamente. Aprendi distinguir
um texto de um não texto. Não ia ser professora, mas queria escrever como uma. No
ano seguinte, o professor de Psicologia, em conversa informal, afirmou que eu
tinha nascido professora. Contestei. No estágio supervisionado, a professora
disse a mesma coisa. Era verdade. Admiti. Incorporei a palavra professora em toda sua
extensão. Esse era o meu tempo. O tempo de estar preparada para me olhar no
espelho de agora e de reconhecer-se na professora que foi, lentamente,
esmerilando-se num longo processo de lapidação. É chegado o tempo do polimento que, a meu ver,
só pode acontecer em interação efetiva no campo de atuação.
Eis por que quero ingressar-me no Mestrado em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso – Rondonópolis e participar da
linha de pesquisa "Formação de
Professores e Políticas Públicas Educacionais”. Fazer parte do grupo de pesquisa “InvestigAção - Formação de professores ”significa, para mim, buscar caminhos que possam desvendar esse tão complexo processo de ensino-aprendizagem,
sobretudo no processo da aquisição da escrita, algo que parece incomodar todos
os setores da sociedade.
Rondonópolis-MT, 11 de outubro de 2013.